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"A Cidade e as Serras", Capítulo IX - parte III, de Eça de Queirós

"A Cidade e as Serras", Capítulo IX - parte III, de Eça de Queirós

Update: 2021-03-07
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Nono capítulo - terceira parte, em audiolivro, do romance “A Cidade e as Serras” de Eça de Queirós.

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“A Cidade e as Serras” é um desenvolvimento do conto “Civilização”, cuja publicação em livro ocorreu em 1901, já depois da morte do autor. No romance é relatada a história de Jacinto, tendo como narrador José Fernandes, um amigo fraternal. Jacinto nasceu e viveu toda a sua vida num palácio dos Campos Elísios, em Paris. Apesar de rodeado de conhecimento, de tecnologia e de luxo, vive aborrecido e decide regressar a Tormes, na região do Douro.


TRANSCRIÇÃO

Durante essas semanas que preguicei em Tormes, eu assisti, com enternecido interesse, a uma considerável evolução de Jacinto nas suas relações com a Natureza. Daquele período sentimental de contemplação, em que colhia teorias nos ramos de qualquer cerejeira, e edificava sistemas sobre o espumar das levadas, o meu Príncipe lentamente passava para o desejo da Acção… E de uma acção directa e material, em que a sua mão, enfim restituída a uma função superior, revolvesse o torrão.

Depois de tanto comentar, o meu Príncipe, evidentemente, aspirava a criar.

Uma tardinha, ao anoitecer, sentados no pomar, no rebordo do tanque, enquanto o Manuel Hortelão apanhava laranjas no alto de uma escada arrimada a uma alta laranjeira, Jacinto observou, mais para si do que para mim:

— É curioso… Nunca plantei uma árvore!

— Pois é um dos três grandes actos, sem os quais, segundo diz não sei que filósofo, nunca se foi um verdadeiro homem… Fazer um filho, plantar uma árvore, escrever um livro. Tens de te apressar, para ser um homem. É possível que talvez nunca prestasses um serviço a uma árvore, como se presta a um semelhante!

— Sim… Em Paris, quando era pequeno, regava os lilases. E no Verão é um belo serviço! Mas nunca semeei.

E como o Manuel descia da escada, o meu Príncipe, que nunca acreditara inteiramente — pobre homem! — no meu saber agrícola, imediatamente reclamou o parecer daquela autoridade:

— Oh Manuel, ouça lá, o que é que se poderia agora semear?

Com o cesto das laranjas enfiado no braço, o Manuel exclamou, através de um lento riso, entre respeitoso e divertido:

— Semear, patrão? Agora é antes colher… Olhe que já se anda a limpar a eirazinha para a debulha, meu patrão.

— Pois sim… Mas sem ser milho nem cevada… Então ali no pomar, rente do muro velho, não se podia plantar uma fila de pessegueiros?

O riso do Manuel crescia.

— Isso sim, meu senhor! Isso é lá para os Santos ou para o Natal. Agora só a couvinha na horta, a beldroega, os espinafres, algum feijãozinho em terra muito fresca…

O meu Príncipe sacudiu, com brando gesto, estes legumes rasteiros.

— Bem, boa noite, Manuel. Essas laranjas são da tal laranjeira que diz o Melchior, muito doces, muito finas? Então leve para os seus pequenos. Leve muitas para os pequenos.

Não! O empenho era criar a árvore. Pela árvore contemplada na serra em sua verdadeira majestade, na beneficência da sua sombra, na frescura embaladora do seu rumorejar, na graça e santidade dos ninhos que a povoam, começara talvez, lentamente, o seu amor novo da terra. E agora sonhava uma Tormes toda coberta de árvores, cujos frutos e verduras, e sombras, e rumorejos suaves, e abrigados ninhos, fossem a obra e o cuidado das suas mãos paternais.

No silêncio grave do crepúsculo, que descia, murmurou ainda:

— Oh Zé Fernandes, quais são as árvores que crescem mais depressa?

— Eh, meu Jacinto… A árvore que cresce mais depressa é o eucalipto, o feiíssimo e ridículo eucalipto. Em seis anos tens aí Tormes coberta de eucaliptos…

— Tudo tão lento, Zé Fernandes…

Porque o seu sonho, que eu compreendia, seria plantar caroços que subissem em fortes troncos, se alargassem em verdes ramarias, antes de ele voltar ao 202, no começo do Inverno…

— Um carvalho!… Trinta anos, antes que seja belo! Desanimo! É bom para Deus, que pode esperar… Patiens quia æternus. Trinta anos! Daqui a trinta anos, árvores só para me cobrirem a sepultura!

— Já é um ganho. E depois para teus filhos, Jacinto…

— Filhos! Onde os tenho eu?

— É o mesmo processo dos castanheiros. Semeia. Não faltam por aí terras agradáveis… Em nove meses tens uma planta feita. E quanto mais tenrinhas, e mais pequeninas, mais essas plantas encantam.

Ele murmurou, cruzando as mãos sobre os joelhos:

— Tudo leva tanto tempo!…

E à borda do tanque nos quedámos, calados, na fresca doçura do anoitecer, entre o cheiro avivado das madressilvas do muro, olhando o crescente da Lua, que surdia dos telhados de Tormes.

E decerto esta pressa de se tornar entre a Natureza não mais um sonhador, mas um criador, arremessou vivamente o seu interesse para os gados! Repetidamente, nos nossos passeios através da quinta, ele lhe notava a solidão.

— Faltam aqui animais, Zé Fernandes!

Imaginava eu que ele apetecia em Tormes o ornato elegante de veados e pavões. Mas um domingo, costeando o largo campo da Ribeirinha, sempre escasso de águas, agora mais ressequido por Verão de tanta secura, o meu Príncipe parou a considerar os três carneiros do caseiro, que retouçavam com penúria uma relvagem pobre.

E, de repente, como magoado:

— Justamente! Aqui está o espaço para um belo prado, um imenso prado, muito verde, muito farto, com rebanhos de carneiros brancos, gordíssimos como bolas de algodão pousadas na relva!… Era lindo, hem? É fácil, não é verdade, Zé Fernandes?

— Sim… Trazes a água para o prado. Águas não faltam, na serra.

E o meu Príncipe encadeando logo nesta inspirada ideia outra, mais rica e vasta, lembrou quanta beleza daria a Tormes encher esses prados, esses verdes ferregiais, de manadas de vacas, formosas vacas inglesas, bem nédias e bem luzidias. Hem? Uma beleza. Para abrigar esses gados ricos, construiria currais perfeitos, de uma arquitectura leve e útil, toda em ferro e vidro, fundamente varridos pelo ar, largamente lavados pela água… Hem? Que formosura! Depois, com todas essas vacas, e o leite jorrando, nada mais fácil e mais divertido, e até mais moral, que a instalação de uma queijeira, à fresca moda holandesa, toda branca e reluzente, de azulejos e de mármore, para fabricar os Camemberts, os Bries… os Coulommiers… Para a casa, que conforto! E para toda a serra, que actividade!

— Pois não te parece, Zé Fernandes?

— Com certeza. Tu tens, em abundância, os quatro elementos: o ar, a água, a terra, e o dinheiro. Com estes quatro elementos, facilmente se faz uma grande lavoura. Quanto mais uma queijeira!

— Pois não é verdade? E até como negócio! Está claro, para mim o lucro é o deleite moral do trabalho, o emprego fecundo do dia… Mas uma queijaria, assim perfeita, rende. Rende prodigiosamente. E educa o paladar, incita a instalações iguais, implanta talvez no país uma indústria nova e rica! Ora com essa instalação, perfeita, quanto me poderá custar cada queijo?

Fechei um olho, calculando:

— Eu te digo… Cada queijo, um desses queijinhos redondos, como o Camembert ou o Rabaçal, pode vir a custar-te, a ti Jacinto queijeiro, entre duzentos e cinquenta e trezentos mil réis.

O meu Príncipe recuou, com dois olhos alegres espantados para mim.

— Como trezentos mil réis?

— Ponhamos duzentos… Tem a certeza! Com todos esses prados, e os encanamentos de água, e a configuração da serra alterada, e as vacas inglesas, e os edifícios de porcelana e vidro, e as máquinas, a extravagância, e a patuscada bucólica, cada queijo te custa, a ti produtor, duzentos mil réis. Mas com certeza o vendes no Porto por um tostão. Põe cinquenta réis para a caixa, rótulos, transporte, comissão, etc. Tens apenas, em cada queijo, uma perda de cento e noventa e nove mil oitocentos e cinquenta réis!

O meu Príncipe não desanimou.

— Perfeitamente! Faço um desses espantosos queijos por semana, ao sábado, para o comermos nós ambos ao domingo!

E tanta energia lhe comunicava o seu novo Optimismo, tão ansiosamente aspirava a criar, que logo, arrastando o Silvério e o Melchior por cabeços e barrancos, largou a percorrer a quinta toda, para determinar onde cresceriam, ao seu mando inspirado, os verdes prados, e se ergueriam, rebrilhantes no sol de Tormes, os currais elegantes. Com a esplêndida segurança dos seus cento e nove contos de renda, não surgia dificuldade, risonhamente murmurada pelo Melchior, ou exclamada, com respeitoso pasmo, pelo Silvério, que ele não afastasse brandamente, com jeito leve, como um galho de roseira brava atravessado numa vereda.

Aquelas rochas, além, empecendo? Que se arrancassem! Um vale importuno dividia dois campos? Que se atulhasse! O Silvério suspirava, enxugando sobre a escura calva um suor quase de angústia. Pobre Silvério! Rijamente sacudido na doce pachorra da sua administração, calculando despesas que se afiguravam sobre-humanas à sua parcimónia serrana, forçado a arquejar, sem descanso, sob soalheiras de Junho, o desgraçado retomara na serra o jeito que Jacinto deixara em Paris, — e era ele que corria pelas longas barbas tenebrosas os dedos desalentados… Enfim uma tarde desabafou comigo, a um canto da varanda, enquanto Jacinto, na livraria, escrevia a um seu amigo de Holanda, o conde Rylant, mordomo-mor da Corte, pedindo desenhos, e planos, e orçamentos de uma queijeira perfeita.

— Pois, sr. Fernandes, se toda esta grandeza vai por diante, sempre lhe digo que o sr. D. Jacinto enterra aqui na serra dezenas de contos… Dezenas de contos!

E como eu aludia à fortuna do meu Príncipe, a quem todas essas obras tão

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